terça-feira, 21 de outubro de 2014

QUESTÕES E MAIS QUESTÕES...



No último domingo, dia 19 de outubro, eu participei de uma mesa de perguntas e respostas que aconteceu na III Fiesta Gitana, organizada e produzida pelo amigo Ricardo Samel. O formato, inovador para as festas do gênero, consistiu em perguntas que eram feitas por escrito pelos convidados e depois sorteadas na mesa, por mim ou pela escritora e amiga Cristina da Costa Pereira. 

Em virtude do tempo, algumas perguntas ficaram sem ser respondidas e nós, Cristina e eu, nos comprometemos com respondê-las depois, via e-mail e internet. Conforme o prometido, sorteamos as oito questões restantes e cada um de nós levou quatro para casa. Posto aqui as minhas:

1 - "De qual continente vieram os ciganos?" 

Essa é bastante simples: da Ásia. Existe muita controvérsia quanto à origem dos rhomá (ciganos). A hipótese mais aceita, por conta de evidências linguísticas e genéticas, é a de que tenham vindo do noroeste do subcontinente indiano, da região onde hoje se situam o Paquistão e o estado indiano do Rajastão. Outras hipóteses dariam conta de uma possível origem semítica ou de um povo anterior às invasões árias que deram origem ao próprio povo indiano. Mas todos parecem concordar que a origem dos ciganos se deu no continente asiático.

2 - "Por que o cigano é um povo nômade?" 

Essa não é uma questão de resposta simples. Por tudo o que sabemos e já conseguimos reconstruir da diáspora romani, o nomadismo não parece ter sido uma escolha, mas uma imposição, já que os ancestrais do povo rhomá (ciganos) foram expulsos de suas terras originais durante as invasões islâmicas no século XI ou foram levados como escravos, nesta mesma época, para a Pérsia. Da Pérsia, teriam partido rumo ao oeste por causa do acirramento dos conflitos religiosos entre cristãos e muçulmanos, ou seja, novamente por força das circunstâncias. Já na Europa, onde uma parte penetrou pelo Bósforo, na Grécia, e outra parece ter entrado pelo Estreito de Gibraltar, eles sofreram perseguição desde o início e nunca puderam permanecer por muito tempo no mesmo lugar.

Com o tempo, acabou se criando uma noção romantizada do nomadismo, em que ele é associado a um “espírito livre”, uma natureza indomável que seria característica dos rhomá. Muitos rhomá, inclusive, tomaram para si essa ideia, a exemplo do famoso poeta Spatzo (de origem sinti), que dizia: “o céu é meu teto, a Terra é minha pátria e a liberdade é a minha religião”. Mas essa parece ter sido uma tendência originada do hábito romani de abraçar o próprio destino e tirar forças da adversidade. Então podemos dizer que o nomadismo foi, a princípio, uma imposição, depois entendido como uma espécie de sina e hoje é interpretado pela maioria dos gadjé (não-ciganos) e também alguns rhomá como uma expressão de liberdade.

3 - "Em que local do Brasil existe a maior comunidade cigana?". 

Em Sousa, na Paraíba. Uma comunidade que começou a se formar nos anos 50 e hoje é composta por três ranchos em que vivem cerca de 1500 famílias.

Há um curta-metragem disponível na internet, que foi produzido a partir de vídeos feitos por um adolescente da própria comunidade. Nele, é possível conhecer um pouco da realidade desses ciganos e dos problemas que eles enfrentam. Segue o link para assistir o vídeo: 


4 - "O que você ou nós poderíamos fazer para divulgar mais essa cultura, que estou começando a conhecer e acho bonita?"

Bom, a primeira coisa que você deve ter em mente é aprender o máximo que lhe for possível sobre a cultura antes de pensar em divulgá-la. Os rhomá, atualmente, estão num processo de organização política, começando a brigar por direitos e visibilidade. Neste processo, pessoas como eu, Cristina da Costa Pereira, alguns artistas e intelectuais, ciganos e não-ciganos, já estamos trabalhando para trazer mais informação sobre nossa cultura, com vistas mesmo a enfrentar o preconceito. Mas confesso que nosso maior desafio tem sido desconstruir informações equivocadas geradas, principalmente, por pessoas que misturam o povo rhomá com crenças religiosas completamente estranhas à etnia (algumas até bem intencionadas, outras nem tanto...). Então meu conselho, já que você acha bonita a nossa cultura, é para que estude e procure se informar da melhor maneira possível, em fontes confiáveis, sobre nosso povo. Simplesmente fazendo isso, você já estará ajudando muito mais do que pode parecer.

Um forte abraço e o meu muito obrigado a todos. 



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

QUALQUER CHÃO LEVA AO CÉU



Faz algum tempo que a amiga Cris Penedo resolveu me dar um presente fora de ocasião - essas coisas que vêm da alma - e me apresentou à escritora Cristina da Costa Pereira, por quem eu já nutria profunda admiração há muitos anos. E Cristina, como o doce de ser humano que é, também me presenteou, já em nosso primeiro encontro, com um exemplar de seu último trabalho: Qualquer Chão Leva ao Céu, a história do menino e do cigano.

Como todo bom leitor aficionado, eu tenho a minha pilha ao lado da cama (risos). Mas, recentemente, consegui colocar a leitura em dia e finalmente peguei o livro de Cristina para ler. A princípio, timidamente, como acontece com qualquer nova relação. Mas a fluidez da escrita, aliada à leveza da narrativa, foi me absorvendo num torvelinho de carência, desejo e necessidade, de maneira tal que eu, um leitor vagaroso, devorei o livro inteiro em apaixonada volúpia, no curso de apenas três dias.

Qualquer Chão Leva ao Céu não é o estilo de livro que estou acostumado a ler (aquelas sombrias ficções de horror). É um livro leve, voltado para o público jovem, chega mesmo a ser pueril. Mas Cristina nos pega de jeito ao fazer de Jorge, um menino de rua, o personagem principal. E em suas idas e vindas pelas tortuosas estradas da vida, ele se depara com Latsi, ou Euclides, um cigano desgarrado de seu povo, atormentado pela lembrança da esposa e do filho, que morreram em um trágico desastre de automóvel. Devagar, bem ao modo das irredutíveis fiandeiras do destino, Latsi e Jorge percebem que as tramas de suas vidas, um cigano e um gajãozinho, estão irremediavelmente ligadas.

A maneira como Cristina constrói o personagem cigano, ou melhor, o universo cigano é, para mim, o ponto alto do livro. Talvez por conta de seus mais de 25 anos de pesquisa e estudos junto aos nossos, ela, uma gadji (não-cigana), conseguiu mostrar os ciganos de forma realista e visceral. Não apenas no que diz respeito aos artefatos, os ritos culturais, mas também - e principalmente - no que diz respeito ao sentir e ao pensar romani. Isso, o sentir e o pensar, é justamente a coisa que eu JAMAIS vi um gadjo (não-cigano) admirador de nossa cultura conseguir entender... Até agora. Porque Cristina, em sua prosa que beira mesmo a poesia, conseguiu o impossível - mergulhar na alma cigana, nadar em seus mistérios.

Os ciganos representados no livro são do grupo Rom, com todas as suas características e peculiaridades culturais. Mas a alma que transborda deles, essa essência tão familiar e completa, é a intercessão que existe entre todos nós, e Cristina, em sua delicada sensibilidade, foi capaz de enxergar de forma surpreendente. Tanto que em alguns momentos, companheiro de Latsi, senti o coração apertado de saudade.

Recomendo para todos os admiradores e interessados em conhecer um pouco mais da milenar cultura romani. Mais do que sobre a cultura romani, no entanto, este é um livro sobre alteridade... E sobre os altos muros que nos separam.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O MICHÊ




Um jovem bem vestido, belo rosto, corpo melhor, tira um telefone celular do bolso, digita um número e espera. Do outro lado, uma voz masculina, rouca: alô?

― E aí, cara? Que que houve? Por que você sumiu?... Aposto que achou alguém mais bonito que eu – ar zombeteiro.
(pausa)
―  Não brinca, cara – diz, entre risos. – Ta pensando que eu sou trouxa? Um filho? Você? Daquela tua mulher? Nem fodendo!
(silêncio do outro lado)
― É sério, não é?... Então você vai ter um filho... Quem diria? Nunca me disse que queria ser pai quando ia atrás de mim lá na sauna da Le Boy... Mas, também, não dava tempo, né? Eu conheço seu tipo... Debaixo do sol, banca o machão, o garoto do papai. Trabalha, estuda, cumpre todas as regras... Casa e, vejam só, agora vai ser pai! Mas na escuridão da noite, ráh! Protegido pela sombra da lua, você busca a segurança em braços mais fortes que os seus. E eu estava lá, não estava. Olhando pra você com esses olhos de cumplicidade alugada... Essa boca de desejo disponível. E você adora passear pelos músculos do meu corpo, enquanto eu te preencho com a masculinidade que te alimenta na simulação da tua vida.
(pausa)
― Nem vem, você sabe que eu não sou gay. Faço isso pra viver. E sou bom que faço, não sou?
(Pausa)
― Mas você abusou da minha confiança, cara. Você ficou me devendo, lembra? Do nosso último encontro? Disse que ia voltar, que ia pagar... E eu, como estou acostumado a te ver quase toda semana, não me importei. Galinha de casa não se corre atrás e você já é cliente antigo. Tudo pela nossa amizade.
(pausa)
― Não, não pensa isso, não faz assim. É claro que eu não liguei pra te cobrar. Não vou te cobrar. Vou deixar de cortesia. Como eu disse, pela nossa amizade. Mas, como somos amigos, você também vai me fazer um favor.
(pausa)
― Me meti numa parada errada. Fiz como você, comprei umas coisas pra pagar depois e não paguei, só que os caras não eram meus amigos. Agora estão atrás de mim. Ou pago, ou morro.
(pausa)
― O que você pode fazer? Simples. Vou passar na tua casa hoje a noite. Sei onde você mora, lembra? E você vai estar com um cheque pra mim. Cinqüenta mil reais.
(pausa)
― Pra cima de mim, cara? Tu é mauricinho, teu pai é figurão, acionista da Petrobrás e de não sei quantas empresas... Cinqüenta mil salva a minha vida, mas não é nada pra tu!
(pausa)
― Sei lá, diz que é pra pagar a escova progressiva da tua mulher ou as fraldas do teu filho que vai nascer. Isso não é problema meu. Mas é bom você estar com esse cheque quando eu chegar aí.
(pausa)
― Por quê? Bom, porque nós somos amigos... E porque você não quer que o teu pai, a tua mãe e aquela idiota da tua mulher saibam o viadinho chupador de pica que você é. Eu vou detestar contar pra eles que você gosta de escalar o pau de sebo enquanto brinca de rodeio. Opa! Será que isso é possível? – risinho sarcástico.
(pausa)
― Bom, cara! Que bom que a gente está se entendendo... Quer saber? Estou com saudade dessa sua bundinha branca. E você deve estar louco de vontade de dar mim, não está?
(pausa)
― Eu tenho boa memória. Tua mulher tem reunião depois do expediente nas quintas... E hoje é quinta-feira. Também sou bom de data, viu? Toma um banho bem gostoso e me espera... Eu vou pegar meu cheque e depois vou te foder. Vou foder você na cozinha, em cima do sofá, na mesa da sala de jantar e, por fim, na cama que você dorme com a pobre coitada. Vou foder você gostoso, sem pressa, mas com firmeza. Do jeito que eu sei que você gosta... Paro quando trovejar, nenhum de nós aguentar ou quando me implorar.
(pausa)
(um risinho malicioso)
― Respira fundo, cara. Até mais tarde.
(desliga o telefone).



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domingo, 24 de agosto de 2014

HINO CAPÉLICO I, A LILITH



Ó, Musas, valham-me nesta noite sem lua. É à Lilith que dedico as profundezas do meu canto.

Noite silenciosa. Sensação de ameaça. Um vento seco e um pio rasga o ar.

Ave de Rapina. Deita Suas asas sobre a presa que se debate.

Senhora das Corujas. Amante das Feras da Noite.

Vento da Madrugada, que sopra silencioso e corre sem sair do lugar.

Agouro dos Injustos, Flagelo dos Perniciosos. Guardiã dos Segredos da Alma. A Boa Carcereira.

Ouve o meu chamado.

Lua Negra, do alo ensanguentado.

Devoradora da Prole Desalmada, que se assenta aos pés da árvore de Inanna.

Tu, que cavalgas o pássaro da noite e dominas os caminhos do Abismo.

Conhecedora de todas as razões. A que conhece cada canto do insondável labirinto das paixões.

Outra face do amor. Senhora que não teme a própria força. Não se constrange ante a face do poder.

Olhos que devolvem o olhar. Espelho do ego. Consorte daquele que anuncia a luz.

Que sob os galhos da Árvore da Vida as sombras não se ocultem. Possas tu alimentar-se da sujeira que habita e corrói a alma humana.

Vingadora dos Injustiçados. Dominadora do Caos.

Cobrador encontre o devedor. Nenhuma ação desconheça a paga, como a presa não desconhece o predador. 

Aos justos, a chama flamejante do archote. Aos injustos, tua visita aos pés da cama, até na hora da morte.  


sábado, 16 de agosto de 2014

CONSIDERAÇÕES SOBRE PAGANISMO E O SENTIMENTO ANTICRISTÃO



Antes de começarmos, uma advertência se faz necessária: este texto é fruto de uma visão pessoal e não foi escrito para convergir na queda d’água dos pensamentos na atualidade. Pelo contrário, é um texto escrito para divergir e, ainda que não tenha a intenção de encerrar o assunto, também não tem a pretensão de ser agradável. Outra coisa que vale a pena dizer é que a linha argumentativa a seguir não se orienta contra pessoas, mas contra ideias e circunstâncias. Dito isso, coloquemos o dedo na ferida.

Embora eu não seja nada presente nos nichos virtuais sobre paganismo, há tempos venho percebendo que o dito “meio pagão” se rege por certos modismos ideológicos – geralmente antagônicos. Traçando uma linha de tempo extremamente resumida, apenas para exemplificar, primeiro foi o boom da Wicca, se não me falha a memória, aqui no Brasil, no início dos anos 90 (sim, estou ficando velho). Depois foi a moda da “bruxaria tradicional”. Todo mundo se dizia de alguma “tradição familiar milenar”. Era legal e dava status. Consequentemente, descer o cacete na Wicca e em seus fundadores tornou-se cult.

Acho que mais ou menos na mesma época, uma onda anticristã começou a banhar as praias neo-pagãs, em grande parte motivada pelos estudos histórico-filosóficos que a prática do paganismo exige nos dias de hoje (pois é, ser pagão é uma coisa trabalhosa à beça). Buscava-se um purismo, que eu não consigo definir senão como tolo, em que toda espécie de sincretismo, sobretudo com elementos cristãos, passou a ser severamente criticado. Atualmente, na era do “politicamente correto” (seja lá o que isso for), o barato é outro – falar bem do cristianismo é legal pacas! Há, diz essa nova geração, que se respeitar o cristianismo, que reconhecer os seus méritos, do contrário seria incentivo à intolerância religiosa.

Ora, claro que eu não sou a favor da intolerância religiosa. O problema é que, no afã do discurso, como de costume, metem-se os pés pelas mãos e busca-se, para usar o vernáculo, tapar o sol com a peneira.

Lembro que nas manifestações do ano passado (2013) uma espécie de jargão se tornou bastante popular: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Sem medo de ser clichê, reproduzo-o aqui, pois acho que ilustra com perfeição minhas elucubrações para este texto. Quero crer que, senão todos, pelo menos a maior parte de nós, pagãos, compreende que os paganismos, em suas mais variadas denominações (afinal, paganismo é uma denominação genérica para uma vasta pluralidade de tradições religiosas), nunca foram essencialmente excludentes. Pelo contrário, eu ousaria dizer que a essência do paganismo, enquanto filosofia religiosa, é a diversidade. Retirando-se o componente cultural do etnocentrismo, comum a praticamente todos os povos religiosos de uma matriz politeísta, os mesmos, ao deparar-se com outras matrizes politeístas, geralmente dão luz ao sincretismo, enxergando seus próprios deuses sob outras roupagens. Isso quando, em termos históricos, o “novo deus” realmente não se parecia com nada familiar àquela cultura e mesmo assim seu culto era absorvido, passando a coexistir com a multiplicidade de cultos já existentes (o caso de Hécate e Dionísio na Grécia).

Lembro de ter ouvido de um professor de História Antiga, ainda no início da graduação, que para um povo politeísta a chegada de um novo deus não altera significativamente a ordem das coisas. É apenas mais um. No entanto, para um povo monoteísta, a chegada de outro deus acaba colocando em xeque a ordem estabelecida, gerando, como consequência, tensão e conflito.

De fato, quando a religião dos hebreus chegou à Roma pagã, com seu deus único, isso não provocou nenhum choque. Roma, assim como a Pérsia, não desejava problemas com os deuses dos povos conquistados e jamais impôs sua religião. Em Israel, os hebreus puderam continuar com seus cultos e sua religião. A religião hebraica, por outro lado, não foi capaz de lidar bem com a alteridade dos romanos, de coexistir, de aceitar dividir o mesmo espaço (alguma semelhança com os dias atuais?), e no contexto do cristianismo a coisa não foi diferente.

As perseguições aos cristãos, das quais eles se queixam até hoje, começaram motivadas em grande parte pelo comportamento hostil dos próprios cristãos. Coisas como ataques aos deuses em praça pública, depredação de santuários, agressão a sacerdotes (novamente, alguma semelhança com os dias atuais?). E quando finalmente o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império, o que já existia enquanto perseguição ideológica não tardou a se tornar proibição jurídica. O culto aos deuses antigos tornou-se ilegal.

Sim, o discurso pacifista é belo, mas não adianta fingir que este, acima, não é o cristianismo. Como uma religião de livro, todo o código moral de seus seguidores, o conjunto de obrigações que cabe aos homens e mulheres, está registrado na Bíblia. Outro dia, enquanto assistia à TV Brasil, vi, numa daquelas vinhetas em que religiosos falam de suas respectivas religiões, um pastor evangélico dizer que “a Bíblia não contém a palavra de Deus, ela É a palavra de Deus”. E é suficiente folheá-la para encontrar algumas obrigações institucionais de todo cristão, um tanto condenáveis de nossa perspectiva moderna. Exemplos:

1.      Os deuses antigos são demônios: “todos os deuses dos gentios são demônios” (Salmos 95,5).

2.      A necessidade de pregar e converter os não-cristãos: “proclama a palavra, insiste, no tempo oportuno e no inoportuno, refuta, ameaça, exorta com toda a paciência e doutrina.” (2 Timóteo 4:2).

3.      O pecado da homossexualidade: “com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é;” (Levítico 18:22) “por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza” (Romanos 1:26).

4.      Submissão da mulher: “porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo” (Efésios 5:23).

Essas só para citar algumas.

Daí me dirão – “ah, mas o cristianismo prega o amor ao próximo”. Respondo que, na verdade, o cristianismo prega o amor por seu semelhante. Adivinhem quem é o semelhante do cristão! Exatamente. Outro cristão. Não fosse assim, as cruzadas, por exemplo, jamais poderiam ter acontecido. Nem vou comentar dos tribunais da Inquisição.

“Ah, mas nem todo cristão é assim.” Isso é verdade. E eu acho ótimo. Mas é preciso considerar que essas pessoas, embora ótimos seres humanos, talvez não sejam boas cristãs do ponto de vista de sua própria tradição religiosa.

A questão é que aprendemos a considerar o cristianismo como o início de toda moral (ainda que de fato não seja). Nossa educação está repleta de seus padrões como referência do certo. A ideia do pecado nos assombra das profundezas do nosso inconsciente. Além disso, tem todo aquele papo do universalismo, de que todas as religiões levam ao mesmo Deus... E é muito difícil, nesta altura da vida, de repente a gente se dar conta de que, não, nem todas as religiões levam ao mesmo Deus. Não, nem todas as religiões têm os mesmos objetivos. Não, todos os deuses, no fundo, NÃO são nomes diferentes para o mesmo deus. E, finalmente, sim, algumas ideologias religiosas podem ser ruins segundo nossos pontos de vista e aquilo que queremos para nós.

Por tudo o que foi dito, fica fácil entender porque tantos pagãos, hoje, se sentem movidos por um certo sentimento anticristão. O cristianismo não é bom para essas pessoas. Eu mesmo, devo confessar, não acho o cristianismo bom pra mim, e nem mesmo para o mundo. Acredito que o problema maior nem seja o rígido código moral, os dogmas inquestionáveis, a concepção unilateral do mundo, mas o fato de ela, declaradamente, não aceitar sequer a existência do divergente. Como lidar de maneira politicamente correta, com diplomacia e aceitação, com uma ideologia que tem por premissa a colonização do outro? Para a qual o simples fato de você existir já é uma ofensa? Deixar de existir não é uma opção. Ignorar essa ideologia já foi historicamente mostrado ser impossível. Para todas as denominações pagãs de que já tive notícia, conviver com o divergente não se mostrou um desafio intransponível, justamente por causa da pluralidade de aspectos que essas tradições reconhecem na natureza e na vida. São as tradições cristãs, em nossa realidade ocidental, que encontram severas dificuldades para coexistir com outros mundos que não o seu. E no afã de conservar apenas a sua resposta, se esforçam em destruir, ideológica ou belicamente, todas as outras. Se fosse possível falar em “pecado” ou “heresia” no contexto pagão e politeísta, este certamente estaria caracterizado pela tentativa de colocar todos os homens sob o mesmo padrão.

Hoje, convivemos, no Brasil, com uma bancada fundamentalista cristã que avança cada dia mais no sentido de estabelecer hegemonia política, retirando ou concedendo direitos conforme as suas próprias crenças. Tudo perfeitamente de acordo com o livro sagrado que os rege.

Terreiros de candomblé são invadidos e destruídos à luz do dia sem que ninguém precise responder por isso. Pessoas sofrem discriminação religiosa em seus trabalhos e escolas, algumas vezes são agredidas no meio da rua. Se um pagão entra em um estabelecimento comercial em que o dono ou os funcionários são cristãos e estão ouvindo hinos de louvor, ele provavelmente voltará ao estabelecimento, porque isso, para ele, não é nada demais. Se um cristão entra em um estabelecimento comercial dirigido por adeptos de religiões afro e eles estiverem ouvindo suas canções sagradas, o cristão provavelmente não voltará e o estabelecimento correrá o risco de falir. Hoje, ao receber um montador de móveis em minha residência, onde há diversos ícones de minha religiosidade, fui obrigado a ouvir um “Jesus te ama”, em nítido tom de provocação, ao final... Mas algumas pessoas acham que eu não posso dizer “que os Deuses lhe abençoem” a um cristão, porque soará ofensivo e ele “não vai entender”. Me pergunto, que tipo de liberdade é esta?

O que urge tornar-se claro é que a necessidade de certo posicionamento, por parte de nós, pagãos dos mais diversos segmentos, não é uma questão de espiritualidade, apenas, mas um ato político de luta por espaço. Cabe a nós delimitar e exigir o espaço que nos pertence. Esta geração, que chegou e encontrou um mundo um tanto pacífico, com pessoas cheias de direitos, parece não saber o trabalho que dá conquistar direitos. Coisas como liberdade e respeito não nos são dadas de graça, elas precisam ser conquistadas.

“Proselitista!”, me acusarão alguns. A estes eu digo que isto jamais foi uma campanha para conversão ou colonização do outro. “É preciso respeitar as pessoas que são cristãs”, dirão outros. Concordo. Na maior parte das vezes, não é preciso desrespeitar alguém para fazer este alguém te respeitar também. Basta saber delimitar seu próprio espaço. Mostrar com suas atitudes que o espaço de um termina onde começa o do outro. Mas ninguém faz isso se escondendo, faz?

Por fim, eu gostaria de dizer a quem possivelmente se sentir ofendido com o que eu disse lá em cima, sobre alguns cristãos serem excelentes seres humanos, mas péssimos religiosos, que não é nenhum orgulho ser bom religioso na religião que descrevi. Ao menos não sob o paradigma cultural que se desenha em nossos dias. Talvez em tempo algum. A esses cristãos, que acreditam num cristianismo diferente, e infelizmente são exceção, eu digo – que vocês sejam em número cada vez maior, para que consigam, talvez num futuro utópico, ressignificar a religião de maneira a fazê-la não mais um instrumento poderoso de dominação de massa e, quem sabe, alguma coisa mais compatível com toda a diversidade que há no mundo.
  


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O MITO DAS ESTAÇÕES

O Retorno de Perséfone. Frederic Leighton, 1891.


“Essas coisas nunca aconteceram, mas sempre existiram.” 

Roberto Calasso


Uma das mais belas e significativas passagens da tradição grega antiga é o mito das estações, que remonta a Elêusis e aos mistérios celebrados em honra às duas Senhoras, Deméter e Perséfone. Em se tratando de mitos, é muito difícil estabelecer uma sequência cronológica, uma vez que o tempo mítico é cíclico e não diz respeito a coisas que aconteceram, mas a coisas que acontecem, hoje, agora, todos os dias. E embora a narrativa pareça girar em torno de duas Deusas, ela deve ser vista mais como uma interação complexa entre forças indispensáveis. A ausência de apenas uma delas, mesmo daquela que pareça mais insignificante para o desfecho das tramas, seria, acreditamos, suficiente para modificar completamente o panorama dos resultados.

Com tudo isso em mente, consideremos que nossa narrativa começa com Plutão, honroso Senhor das Profundezas Abissais, seu trabalho incansável, porém silencioso, e sua infinita solidão.

Zeus pai, Senhor dos Céus e da vida, preocupado com Plutão, seu irmão mais jovem, em sua vida solitária e distante, procurou Afrodite, dos Doces Amores, para que ela intercedesse em favor do Senhor do Submundo e lhe encontrasse alguma companhia. Em se tratando de amor, Afrodite é sempre sensível e dificilmente recusa um pedido de ajuda. Ainda mais em se tratando do Senhor do Olimpo em pessoa – e essência.

Além disso, passeava pelos bosques, naquele tempo, Coré, filha única de Deméter, de trigais madeixas, com o próprio Zeus. Sempre acompanhada por um cortejo de ninfas, as quais lhe confiara a sua guarda a própria Deméter, Coré não se interessava pelo amor. E isso incomodava severamente a Afrodite, que recentemente já havia se sentido afrontada quando Zeus concedeu a Atená, de olhos glaucos, Ártemis, do arco enluarado, e Héstia, de cálida candura, o direito de permanecerem eternamente virgens. Vendo no pedido de Zeus uma oportunidade de evitar nova ofensa, Afrodite convocou o filho Eros, o amor, e ordenou-lhe que agisse.

Foi assim que, em certa noite enluarada, Zeus, que se fizera cúmplice de Afrodite, convocou o irmão desde sua sombria morada e, quando este passava, invisível, como de costume, pelos campos onde Coré colhia flores sob as gotas de orvalho, o Cupido acertou-lhe em cheio o peito com uma de suas devastadoras setas douradas. Confuso com o sentimento desconhecido que agora tomava-lhe de assalto, o Senhor do Averno não pôde controlar o ímpeto – com a altivez e tímida sensualidade que lhe era natural, aproximou-se e, declarando seu amor, pediu Coré em casamento.

Dividida entre seu antigo desinteresse pelos mistérios de Afrodite e a austera sedução de Hades, Coré confiou a decisão a sua mãe. Mas Deméter, incapaz de prescindir da companhia de Coré, negou a mão da filha ao Senhor das Trevosas Planícies.

Inconformado, Plutão procurou o Senhor dos Céus, seu irmão, pedindo uma intercessão. Havia sido por um ardil de Zeus que ele agora padecia de paixão, então cabia ao Trovejante resolver aquele impasse. E foi assim que Zeus, temendo desagradar a qualquer dos imortais fraternos, disse que Plutão esperasse o melhor momento.

Um dia, enquanto Coré apreciava as pétalas lânguidas de um narciso à beira do lago, o chão abriu-se de repente e, diante de si, surgiu o insondável Plutão. Tomada nos braços vigorosos do sombrio amante, ela contemplou a sua face proibida. No brilho esfumaçado de seus olhos de obsidiana, a jovem donzela encontrou o próprio semblante... e desfaleceu.

Foi levada, raptada, para os confins do Averno, entre almas penitentes e amaldiçoadas, mas também tesouros de radiante beleza e férteis terras onde floresciam suculentas romãs. Quando voltou a si, encontrou-se dividida entre o horror daquela escuridão e sua beleza intrigante; entre o amor e a companhia da mãe e os novos sentimentos pelo anfitrião, que desejava desposar-lhe e, gentilmente, oferecia-lhe o trono de seu reino, o mais vasto e rico quinhão da criação.

Enquanto isso, Deméter, angustiada com a ausência repentina de Coré, procurava a filha em toda a parte. Seu cortejo de ninfas, filhas do deus-rio Achelous e da musa Terpsícore, tampouco sabia onde ela estava. Enfurecida, a Deusa puniu-as pela falta de zelo. Transformou-as em sereias, horrendas mulheres-pássaro, que deveriam voar por toda parte até encontrar a jovem desaparecida. Depois, subiu ao Olimpo para interrogar aos Deuses e ao próprio Zeus, invocando sua responsabilidade de pai. Mas os deuses, sob as ordens de Zeus, Poderoso, silenciaram-se. Ninguém ousava contar a Deméter o destino de Coré.

A Deusa de loiras tranças mergulhara em profunda tristeza. Consternada, deixou a morada dos Deuses eternos e pôs-se a vagar pelo mundo dos homens em busca de Coré. Seus cabelos dourados embranqueceram. Sua pele aveludada enrugou-se. Deméter, enlutada, vagava pelas estradas e cidades humanas como uma velha peregrina e maltrapilha.

Tomada de devastadora tristeza, logo abandonou seus ofícios divinos. As terras tornaram-se inférteis, As plantações definhavam, assim como os animais. As sementes nem chegavam a nascer. Toda a obra de Gaia e Urano, a própria criação, afundava-se em frio desolador, doenças e fome.

Os Deuses desesperavam-se. Se a tristeza de Deméter não tardasse a ser curada, talvez a própria Terra não sobrevivesse. Ísis, de asas douradas, a mensageira do Olimpo, procurava-a a pedido de Zeus, mas a Deusa não queria ser encontrada.

Certo dia, ao passar por uma encruzilhada, encontrou-se com Hécate, a Portadora dos Archotes, aquela que faz o que lhe apraz. Hécate, Senhora das encruzilhadas, dos caminhos em todos os reinos e planos da existência, até mesmo das tramas do destino, compadeceu-se da dor de Deméter. Afinal, também era mãe.

—Você, por acaso, teria visto o que aconteceu a Coré? — questionou a Deusa enlutada.

— Não — Hécate respondeu — Mas sua dor ecoa em meu ventre. Eu não vi, mas sei quem tenha visto.

A Portadora dos Archotes iluminou, assim, o caminho de Deméter até o encontro de Hélio, Resplandecente, Aquele que tudo vê.

— Coré — disse o Sol — foi levada para o sombrio reino de Plutão, onde este a fez sua rainha. O próprio Zeus assim o permitiu em um acordo entre irmãos.

Deméter ficou furiosa. Quis ir até o Olimpo, confrontar o Trovejante. Mas Hécate, de bons conselhos, orientou-a diferente. Deméter, em negros véus, seguiu para seu santuário, em Elêusis, e lá despiu-se do disfarce. Mas a Terra continuava a morrer. Não tardou para que Íris a encontrasse, levando consigo as súplicas divinas. Irredutível, a Senhora dos Trigais avisou que a Terra somente floresceria outra vez quando Coré voltasse aos seus braços. E o recado a Zeus foi dado.

Vendo-se sem saída, Zeus não teve alternativa senão pedir a Plutão que devolvesse Coré aos braços de sua mãe. Mas a própria Coré já não era a mesma de outrora. Uma vez rainha das planícies abissais, tornara-se Perséfone. Não mais menina, mas mulher. Não mais filha, mas esposa.

Astuto, o Senhor Sombrio deu-lhe três sementes de suculenta romã. A regra é clara — aquele que prova das delícias do Averno ao Averno deve pertencer.

A iniciativa de Plutão, mais uma vez, obrigava Zeus, enquanto árbitro divino, a uma difícil decisão. De um lado, Démeter, mãe inconsolável, recusava-se a prover a Terra de frutos frescos enquanto Coré não estivesse de volta a sua companhia. De outro, Plutão, sombrio Senhor do submundo, reclamava seus direitos de monarca e esposo.

Talvez pelo conselho auspicioso de Atená, a Virgem de Olhos Glaucos, Zeus decidiu — Perséfone haveria de voltar. Permaneceria dois terços de um ciclo do Sol (o ano) ao lado de Deméter no Olimpo, mas, ao final desse período, voltaria aos abraços voluptuosos de Plutão no Averno, completando o ciclo como Senhora das Profundezas Abissais, a benfazeja, porém temida, Rainha do Submundo.

Com a anuência de todos os interessados, Hermes, o Guia das Almas, recebeu a incumbência de trazer Perséfone, outra vez Coré, aos braços amorosos da Mãe. E foi assim que, suspiram as musas, nasceram as estações. Quando Perséfone atravessa as portas do Averno, no início da Primavera, guiada pelos pés ligeiros de Mercúrio, o rosto de Deméter se enche de sorrisos. As flores brotam e o frio se esvai.

A felicidade da Senhora alcança o apogeu em pleno verão, quando a Terra presenteia aos seres vivos com seus frutos e sementes. Mas, no início do outono, quando Coré, outra vez Perséfone, precisa retornar à sombria morada de Plutão, a felicidade esfuziante no rosto iluminado da Deusa a abandona pouco a pouco, até culminar no gelo infértil do inverno. É quando a saudade mais aperta.

Lá embaixo, onde nenhuma criatura viva ousa chegar, Perséfone, de sua parte, criou um santuário para os protegidos de Deméter. São os Campos Elísios, onde a Deusa, eternamente, vela pelos protegidos de sua mãe, agora protegidos seus. 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

NOSSA SENHORA DO PARQUE DAS ÁGUAS


Desde a primeira vez que estive em São Lourenço, no final de 2010, fiquei intrigado com a imagem que se destaca num canto um pouco mais isolado do Parque das Águas, onde paira uma atmosfera diferente, perceptivelmente especial. Há ali uma plaquinha que diz "Nossa Senhora dos Remédios" e aos seus pés espalham-se centenas de plaquinhas de agradecimento por graças alcançadas, feitas dos mais diversos tipos de material. 

A imagem em si, cravada num nicho de pedra na parte mais alta do Parque, não se parece com nada que eu já tenha visto antes. Retrata uma mulher de aparência jovem, usando uma espécie de túnica azul com um capuz e as mãos espalmadas. A mim, que sou um eterno interessado pelas manifestações do divino, aquilo chamou a atenção de maneira irremediável. Ora, num parque municipal em que existem nada menos que nove fontes de água mineral, todas elas medicinais, não me pareceu tão estranho que houvesse um santuário dedicado à Nossa Senhora dos Remédios. Mas por que ali, longe de qualquer igreja ou altar oficial, tantas placas de devoção e agradecimento? Era isso o que me chamava a atenção. E estava claro para mim que, naquele lugar especial, aquela era uma imagem milagrosa. 



Em vão, procurei pelas lojas da cidade uma que vendesse réplicas da tal imagem. Era de se esperar que uma Nossa Senhora tão procurada e agraciada por seus milagres tivesse réplicas nas lojas locais... Mas não havia nada. 

Agora, quatro anos depois, eu voltei a São Lourenço e a imagem de Nossa Senhora dos Remédios ainda estava lá, observando, plácida, a paisagem do alto de seu nicho de pedra, cercada por centenas de placas, e imitações de partes do corpo humano feitas de cera.

Outra vez fiquei intrigado. Outra vez busquei nas lojas de artesanato locais uma réplica daquela imagem. Depois de quase desistir, finalmente encontrei a lojinha de uma senhora portuguesa, muito simpática, especializada em santos católicos. Entrei, perguntei por Nossa Senhora dos Remédios e ela me trouxe uma pequena imagem de resina que em nada se parecia com aquela que há no Parque das Águas.

   
Enfadado, eu disse: ― Mas esta não é a imagem que está no Parque das Águas.

Ao que ela, prontamente, respondeu: ― É porque aquela lá não é Nossa Senhora dos Remédios.

A princípio, fiquei em estado de choque e por alguns segundos não fui capaz de dizer coisa alguma. Passados alguns instantes, e ainda segurando a imagem "oficial" da Nossa Senhora dos Remédios, finalmente voltei a mim e perguntei: 

― Então quem é aquela lá?
― Esta é uma história longa ― ela disse.
― Tenho tempo. A senhora pode me contar?

E foi assim que puxei uma cadeira dentro da loja e me sentei com aquela simpática velhinha portuguesa para ouvir a história que ela soube diretamente do antigo - e falecido - proprietário do Parque das Águas de São Lourenço. 

Aconteceu que aquele senhor, cujo nome me esqueci, fundou o Parque muitos anos atrás e tinha tido a intenção de fazê-lo dedicado aos amantes, aos namorados. É por causa disso que na ilhazinha que existe no meio do lago, onde passeamos de pedalinho, um portal metálico em forma de coração recebe os visitantes e antecede uma belíssima estátua de Eros, o deus grego do amor. Ao falar de sua intenção com um amigo de Portugal, que era um escultor e artista plástico, este lhe disse: "então eu vou fazer um bonito casal de namorados e mandá-lo de presente para você, aí no Brasil, para ajudá-lo a decorar seu novo parque.

E assim foi feito. O amigo português do antigo (e também português) dono do Parque das Águas esculpiu em cerâmica um bonito casal de namorados e mandou para o Brasil, de barco. Mas no meio da viagem, em alto mar, o homem quebrou...

Quando as esculturas chegaram e o senhor descobriu o que havia acontecido durante a viagem, ele se perguntou: "e agora, o que eu faço?" Decidiu, por fim, e em consideração ao amigo, colocar apenas a mulher. Mandou fazer um nicho de pedra e fixou ali a namoradinha, vinda de Portugal.

Em menos de uma semana, surgiu, ninguém sabe dizer como, a primeira placa de agradecimento à "Nossa Senhora dos Remédios". Muito devoto, o senhor, antigo dono do Parque, não quis mexer e deixou aquela plaquinha lá. Foi quando outras começaram a aparecer, e mais outras. Em pouco tempo, um infinidade de placas votivas cercavam os pés da estátua, exatamente como hoje. De tempos em tempos, algumas dessas placas são recolhidas para dar lugar a outras, que não tardam a chegar. Então o antigo dono do Parque, que hoje pertence à prefeitura de São Lourenço, chegou a seguinte conclusão: "quer saber? Que seja, então, Nossa Senhora dos Remédios!" E assim é até os dias de hoje. 


Poucas pessoas, inclusive em São Lourenço, conhecem essa história que acabo de contar. Nossa Senhora dos Remédios permanece sendo, como o próprio mar, uma fonte de segredos e milagres, escondida da serenidade sobrenatural do Parque das Águas. 

Da última vez que estive lá, em 2010, não me lembro de ter visto isso, mas agora, em 2014, quando me virei para ir embora, deparei, exatamente de frente para o nicho de pedra onde está Nossa Senhora dos Remédios, com uma forma sua mais antiga...

Tétis, deusa do mar primordial, mãe dos rios e das nascentes. 
E naquele momento em que finalmente A reconheci e compreendi o Seu mistério, lágrimas salgadas me escorreram pelas faces, exatamente como as águas medicinais, magnesianas, sulfurosas e ferruginosas, escorrem pelas fontes que se espalham, abundantes, pelo Parque.  

quinta-feira, 27 de março de 2014

ENTREVISTA COM O CIGANO



O querido João Bosco Araújo, lá de Sousa, que já é um ativista da causa cigana há muitos anos, está fazendo seu TCC da graduação em Serviço Social sobre os ciganos e as políticas públicas no Brasil. Com o objetivo de colher dados para o projeto e aprender um pouco mais sobre a maneira como pensam romá de diferentes procedências e cantos do Brasil, ele resolveu entrevistar alguns de nós. Este que vos escreve, como não poderia deixar de ser, foi um dos ilustres escolhidos. (risos) 

Brincadeiras a parte, a iniciativa do Bosquinho está de parabéns! A entrevista ficou tão legal que resolvi - com a autorização dele, é claro - postar aqui no blog. O resultado vocês podem conferir aí embaixo! ;-)

Você é cigano?

Sim.

Pertence a qual grupo étnico (Rom, Sinti ou Calon)?

Meu pai é calon, da Paraíba, minha mãe é sinti, descendente de imigrantes italianos. Pela tradição, eu seria calon. Mas como fui criado na família de minha mãe e tive pouco contato com a família de meu pai, me considero sinti.

A qual subgrupo étnico pertence (kalderash, lovari, matchuayia, carrapicheiro, etc.)?

Brasiliako, descendente de italiaias.

Ainda pratica o nomadismo ou o semi-nomadismo?

Não.

Sua família ou amigos ainda praticam o nomadismo ou o semi-nomadismo?

Não.

Conhece ou tem contatos com grupos nômades ou semi-nômades?

Conheço alguns grupos nômades e algumas famílias que praticam o semi-nomadismo, mas não tenho muito contato com eles.

Possui documentos civis (certidão de nascimento, identidade, CPF, título de eleitor)? Quais?

Sim. Tenho todos os documentos. Certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF, título de eleitor...

Costuma votar nas eleições periódicas?

Sim, em todas elas.

Prestou alistamento militar?

Sim, também tenho o certificado de reservista.

Você se considera um cidadão brasileiro?

Com certeza.

Frequentou escola regular? Se sim, cursou até que série?

Sim, frequentei. Cursei todo o ensino fundamental e médio. Atualmente estou cursando História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Acha a escola importante para os ciganos?

Com certeza. Sem educação o nosso povo jamais conseguirá conquistar o seu lugar de direito no mundo.

Já precisou ou fez uso de hospitais ou médicos da saúde pública? Se sim, como foi o atendimento?

Sim, algumas vezes. Como tenho todos os documentos civis, o atendimento foi normal, apenas ruim como a saúde pública no Brasil é.

Já sofreu preconceito ou discriminação por ser cigano?

Minha família, há muito tempo, optou por viver na condição de cripto-ciganos, então não temos o hábito de falar de nossas origens, o que sem dúvida evita muito preconceito. Mesmo assim, já sofri preconceito por parte de pessoas que, desinformadas, acham que ser cigano é pertencer a alguma religião. 

Para você, o que é ser cigano, como se constrói essa identidade?

Ser cigano é ter uma descendência que remete a um povo de origem oriental que por alguma razão misteriosa ganhou o mundo, tornando-se nômade, em algum momento do século XI. Mais que isso, ser cigano é ser o herdeiro das tradições desse povo, tradições essas pelas quais devemos zelar e que somos responsáveis por perpetuar, para que nosso povo e nossa linhagem não desapareçam da face da terra.

Como você vê a situação dos ciganos hoje no Brasil?

Em relação à Europa, onde as perseguições vêm crescido de maneira assustadora, nossa situação aqui é muito boa. Também é muito mais fácil para um cigano se integrar à sociedade não-cigana morando num país miscigenado como o Brasil. No entanto, a invisibilidade do povo cigano, de maneira geral, ainda é um fato. Muitos não sabem que somos um povo, com cultura e história própria, nos confundem com religiões e uma grande parte de nós ainda vive às margens da sociedade, no analfabetismo, em situação precária e privada dos direitos civis e sociais mais básicos. Ainda há muito pelo que lutar.

Como você acha que deveriam ser as políticas públicas voltadas para o povo cigano hoje no Brasil?

A primeira coisa é dar o reconhecimento aos ciganos de minoria étnica. Somos uma minoria étnica presente nessas terras desde o período colonial e tivemos participação ativa na construção da cultura e da identidade brasileira, como muitos estudos recentes comprovam. Merecemos ser reconhecidos e valorizados enquanto ciganos dentro da sociedade. Uma vez que se reconheça isso, o próximo passo seria tratar das necessidades especiais dos ciganos em função de seu modo de vida. Ainda há muitos, como eu disse anteriormente, vivendo à margem da sociedade, privados de direitos básicos, sem acesso á saúde e à educação, como verdadeiros párias em pleno século XXI.

Do seu ponto de vista, quais as maiores necessidades dos ciganos hoje, no Brasil?

Eu acho que a maior necessidade dos ciganos, hoje, no Brasil é reconhecimento. Precisamos ser reconhecidos como pessoas, membros de uma comunidade tradicional, precisamos que vejam que estamos aqui, porque a maior parte de nós simplesmente não é vista, é vista apenas em períodos eleitorais ou é pensada como entidade de algum culto religioso. Somos pessoas, temos necessidades, o Brasil precisa descobrir essa realidade.

Em segundo lugar, vem a questão da educação, que para mim é muito séria. Tenho a impressão de que a maior parte dos ciganos brasileiros ainda não percebeu a importância que a educação tem na construção do nosso futuro. É preciso pensar na questão da educação, para modificar verdadeiramente nossa realidade no longo prazo, e vejo isso como um desafio tanto para as políticas públicas quanto para os próprios ciganos.

Como é, do seu ponto de vista, a relação dos ciganos com os não-ciganos?

Bem, isso depende. Os ciganos não são uma comunidade única e homogênea. Há diversas maneiras de se construir essa relação inter-sociedades, mas, de maneira geral, os ciganos têm relações comerciais com os não-ciganos. O que quero dizer com isso? Sabe a diplomacia que há entre os países, aquela coisa de ministro do comércio exterior? Então, é quase a mesma coisa. A maior parte das famílias estabelece laços comerciais/profissionais com os não-ciganos para garantir o sustento. No entanto, construir relações de amizade muito profundas, embora possa acontecer, não é algo comum ou mesmo procurado.

Com as novas gerações, todavia, essa realidade vem se modificando, o que é visto com preocupação e reservas pelos mais velhos.  

Você acha que uma integração maior entre as duas sociedades, cigana e não-cigana, poderia ser proveitosa para os ciganos?

Com certeza. O isolamento, historicamente, foi uma estratégia de sobrevivência, num mundo hostil, em que você estava seguro se seus inimigos soubessem o mínimo possível a seu respeito – e quase todos podiam ser vistos como inimigos em potencial. Hoje a realidade se inverteu. Há muito tempo eu percebi que a nova ordem do mundo é informação. Quem não é visto não é lembrado e da forma como as coisas estão instituídas, ninguém mais consegue sobreviver isolado, ninguém está seguro sozinho. Então, nessa nova delineação de necessidades, nós precisamos fazer as pessoas se interessarem por nós, precisamos fazê-las saber o máximo possível ao nosso respeito, preservando, é claro, a nossa individualidade. O comportamento dos judeus após a Segunda Guerra Mundial me ensinou isso.

É sabido que os ciganos, em geral, são uma das comunidades mais tradicionais e fechadas que existem. Você acha que existe a necessidade de mudar internamente alguns aspectos culturais, no sentido de tornar mais fácil a integração com o mundo não-cigano?

Sim, acho que esse é o ponto. É preciso, mais do que nunca, fazer um trabalho com os próprios ciganos, dentro das comunidades, porque isso que eu disse aí em cima, infelizmente, está muito longe de ser um pensamento comum ou aceito por todos. A maior parte ainda tem um desprezo, uma espécie de ressentimento pelas coisas do mundo não-cigano. A educação não-cigana, quer dizer, as escolas não são valorizadas. Os próprios ciganos, muitas vezes, se colocam à margem, como párias. É preciso mudar essa situação.

Também existe a questão da identidade. A identidade, para um povo nômade, espalhado pelo mundo todo, é uma questão de difícil consenso, e para muitos líderes ciganos, a mudança, mesmo que de apenas aspectos culturais, implica na dissolução, no esvaziamento da identidade cigana. Repensar essa questão é um grande desafio.

Historicamente, sabemos que muito do que hoje se considera “cultura cigana” pelos próprios ciganos é, na verdade, influência ou empréstimo cultural não-cigano, tomado de suas viagens pelo mundo. A cultura não-cigana, que, em geral, não precisa se preocupar com a definição de uma identidade étnica, muda muito rapidamente, ao passo que os ciganos, até por conta do valor que tem a oralidade para nós, tendem a se apegar muito intensamente aos valores antigos.

Assim, ainda é comum a exclusão de homossexuais, a mulher relegada a um papel social de submissão, homens que estudam apenas até aprenderem as operações matemáticas básicas por conta de suas necessidades comerciais, etc.

Pessoalmente, acho que a cultura cigana é muito mais do que isso e que nossa identidade não se define dessa forma. Outra vez recorro ao exemplo dos judeus, como um povo também de origem nômade, que soube se integrar à sociedade não-judaica sem, contudo, perder a identidade. Por que não poderíamos, nós, fazer a mesma coisa?

A partir das perspectivas de hoje, como você vê o futuro dos ciganos no Brasil?

Eu não diria o futuro, propriamente, mas vejo a tentativa de construir um futuro como uma luta contra o tempo, quiçá contra o destino. Os ciganos foram, desde sempre, mestres na arte de sobreviver. Passaram por perseguições, escravidão e genocídio. No curso da História, nossos antepassados souberam sobreviver melhor que qualquer outro povo. Mas hoje, não sei, as últimas gerações parecem ter perdido essa capacidade. O mundo mudou, eles perceberam, mas não estão sabendo se adaptar, coisa que sempre fizeram muito bem, e isso é ruim no longo prazo, ou seja, para o futuro.

Nunca fui niilista, pessimista ou coisa que o valha, mas, por tudo o que já disse aí em cima, se mudanças significativas não começarem a acontecer – e quando falo de mudanças não me refiro apenas às políticas públicas do Estado, mas às próprias relações dos ciganos com os não-ciganos e, principalmente, uns com os outros – rezo para que tenhamos um futuro. Pode parecer paradoxal que a sobrevivência de nossa identidade esteja mais ligada à maneira como interagimos e nos integramos com outras identidades do que à tentativa obstinada de manter essa identidade pura, protegida o máximo possível do contato com o outro, com a alteridade. A História e a Antropologia, no entanto, já provaram que é exatamente assim que as coisas são.

Obrigado. 

segunda-feira, 10 de março de 2014

OLIVEIRA, A HISTÓRIA ASSUSTADORA DOS IRMÃOS NECRÓFILOS DE NOVA FRIBURGO

Henrique Oliveira após sua prisão, em 1996.

Na trilha do lançamento de Isolados, novo filme de Tomas Portella (Qualquer Gato Vira-Lata), inspirado na história real de Ibrahim e Henrique de Oliveira, os “irmãos necrófilos”, acho pertinente relembrar a trajetória dessas personagens assustadoras da nossa história recente. Digo isso porque, embora a coisa toda tenha acontecido entre os anos de 1995 e 1996, eu, que tenho excelente memória, não me lembrava do caso. Daí a pergunta: com quantos mais estaria acontecendo a mesma coisa?

Em janeiro de 1995, o vigia João Carlos Maria da Rocha namorava com Elizabeth Ferreira Lima na beira de um riacho, em Nova Friburgo. Foi quando foram surpreendidos pelos irmãos Oliveira, que mataram João Carlos e estupraram Elizabeth. Elizabeth, na verdade, fingiu-se de morta e só por isso conseguiu escapar com vida. Os irmão, que se tornaram conhecidos na imprensa de todo o país como “Irmãos Necrófilos”, costumavam matar as vítimas e depois abusar sexualmente dos cadáveres, algumas vezes esquartejando-as ou desfigurando seus órgãos genitais em seguida. Elizabeth teve muita sorte. Ela se tornou a principal testemunha no caso contra os irmãos.

Estima-se que cerca de 22 pessoas tenham sido mortas em condições semelhantes, no espaço de tempo entre fevereiro de 1991 e novembro de 1995. No entanto, a polícia conseguiu relacionar os irmãos a apenas oito desses crimes, entre as vítimas 6 mulheres, o vigia João Carlos e uma criança.

Isolados não é o primeiro filme que busca inspiração na história macabra de Ibrahim e Henrique. Já em 1996, o diretor Petter Baiestorf, bem conhecido por seus filmes gore, baseou-se nos relatos assustadores sobre os crimes dos irmãos necrófilos para filmar “Eles Comem Sua Carne”. No entanto, Isolados parece trabalhar a trama sob uma perspectiva mais realista e, talvez por isso mesmo, mais visceral e perturbadora. Além disso, ousa lançar no cinema nacional, conhecido por suas comédias, romances regionais e pornochanchadas, uma obra no gênero suspense e horror psicológico, protagonizada (e antagonizada) completamente por atores brasileiros.

Na época, uma grande operação policial foi armada para a perseguição e captura dos irmãos, que, graças à cobertura da imprensa, tinham se tornado as figuras mais procuradas do país. Cerca de 250 policiais, entre agentes locais e membros do BOPE, foram mobilizados pela cidade e pelas florestas da região. Além de encontrar e capturar os irmãos necrófilos, a polícia tinha ainda outra difícil missão – tentar chegar primeiro que o resto da população.


A prefeitura de Nova Friburgo havia anunciado, segundo informações difusas, o pagamento de 5000 R$ para quem encontrasse os irmãos. Isso motivou a ação de um incontável número de caçadores de recompensas. Além disso, também havia a noção de uma “justiça local”, que, segundo alguns, não competia à polícia. “Aqui é com a gente. A polícia não vai se meter. O que eles fizeram é selvageria e selvageria se paga com selvageria.”, disse o agricultor João das Neves, de 49 anos, a um repórter. Pelo que parece, os moradores já haviam até mesmo escolhido a árvore em que pendurariam os cadáveres dos irmãos.

Em dezembro de 1995, um dos irmãos foi visto por pessoas que estavam no sítio do comerciante Hélio da Fonseca, nos arredores da Montanha dos Pinéis, em Riograndina, distrito de Nova Friburgo. Alertados, os homens do BOPE subiram a montanha, enquanto moradores da região, armados de carabinas e facões, fechavam as trilhas de descida da montanha para evitar a fuga. Na operação, Ibrahim acabou morto pela polícia, mas Henrique, ainda não se sabe como, conseguiu fugir.

Numa das declarações dadas à imprensa, o delegado responsável pelo caso, Henrique Pessoa, disse que seria difícil que o fugitivo escapasse da fúria popular por muito tempo. “Não tenho dúvidas de que haverá um justiçamento”, ele afirmou à reportagem da Folha de São Paulo. Não foi preciso nada disso, no entanto. Em 18 de junho de 1996, o próprio Henrique entregou-se ao fórum de Friburgo.

Ele ainda tentou colocar a culpa pelos assassinatos no irmão, que havia sido morto, assumindo apenas o papel de expectador nos crimes, mas foi julgado e, em 1 de setembro de 2000, acabou condenado pelo tribunal do júri, em decisão unânime, a 34 anos de prisão. Apesar disso, há quem diga que ele está novamente em liberdade, e que encontrou um novo parceiro para prosseguir em sua trilha de assassinatos e estupros pela Região Serrana do Rio de Janeiro... Será? Contando com a eficácia e efetividade extrema de nossos sistemas judiciário e prisional, eu não acho impossível.

Isolados ainda não tem data de estréia confirmada, mas, segundo os produtores, é provável que seja ainda no primeiro semestre de 2014. Vamos aguardar, mas, até lá, não deixe de conferir o vídeo/publicidade da produção aí embaixo. Um forte abraço em todos! ;-)


quinta-feira, 6 de março de 2014

A JUSTIÇA DOS JUSTICEIROS

O Remorso de Orestes. William-Adolphe Bouguereau

Recentemente, o Brasil vem sendo palco da atuação de grupos civis vulgarmente denominados “justiceiros”. Trata-se, amiúde, da boa e velha justiça com as próprias mãos, a Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”. Já tornou-se uma brincadeira em meu círculo de amigos dizermos que o país está sofrendo de Transtorno Bipolar e, como não poderia deixar de ser, as opiniões quanto a isso se dividem nas redes sociais e botequins brasis afora entre os que são radicalmente contra e os que são radicalmente a favor.

Quem é radicalmente contra costuma adotar o discurso de culpabilização da sociedade. A sociedade, esse ente abstrato e carente de definição, seria a culpada por produzir a criminalidade – ela mesma produz o meliante por meio das injustiças sociais. Para este grupo, a criminalidade é um sintoma de nossas estruturas sociais desiguais e extremamente decadentes. Ela não pode ser vista como um problema sanitário e, portanto, a ação dos justiceiros é apenas mais uma forma de discriminação sócio-econômica-racial.

Eles certamente deixam de considerar que, se por um lado a criminalidade exacerbada é fruto de um quadro social doente, por outro a ação dos justiceiros é igualmente sintomática de um sistema judicial e carcerário falidos, da impunidade aviltante e da sensação de insegurança crescente. Alguns chegam mesmo a negar o óbvio, reduzindo o fenômeno a uma questão cultural, racismo/elitismo secular. Não é preciso ser Einstein, no entanto, para calcular a fórmula simples, quase matemática: sem impunidade a ação de “justiceiros” não faz o menor sentido. Pela própria lógica da coisa, uma existe em função da outra.

Os que são radicalmente a favor, por outro lado, costumam adotar o discurso do “bandido bom é bandido morto”. Para eles, a desigualdade social existe, mas não é desculpa para o crime. Eles afirmam que o cidadão trabalhador, que paga seus impostos, sente-se acuado, com medo, em meio a tanta violência. E a culpa da criminalidade acentuada em nossas cidades seria do sucateamento e da corrupção das forças policiais, bem como da sensação de impunidade de que goza o indivíduo ao cometer um crime. É como se cada um pudesse fazer o que quisesse.

Estes, por ingenuidade ou incompetência política, preocupam-se com o momento, desconsiderando os efeitos dessa “solução” um pouco mais a frente. Quando escolhemos viver em sociedade, institui-se algo que  Thomas Hobbes, John Locke  e Jean-Jacques Rousseau denominaram Pacto Social. Confiamos a uma entidade denominada Estado a responsabilidade por manter a segurança no meio social. Se o Pacto é rompido, seja pela ação do próprio Estado ou pela nossa, enquanto cidadãos, o resultado disso é o caos em longo prazo. Justiça não é algo como o azul, o quente ou o claro, com um significado absoluto e fixo para todos. Existem tantas concepções de justiça quanto existem de coisas como bom e ruim, certo e errado... Imaginemos o que aconteceria caso vários grupos diferentes começassem a se organizar, cada um deles defendendo a sua própria concepção de justiça.

Para exemplificar, recorro à mitologia grega. O mito de Orestes e a Maldição da Casa de Atreu é uma das passagens mais sangrentas da mitologia de todos os povos. Narrada detalhadamente na obra de Ésquilo (525 a.E.C. - 456 a.E.C.), a saga apresenta uma sucessão terrível de assassinatos motivados por vingança. Tudo começa quando os irmãos Atreu e Tiestes, após a morte do pai, o rei Euristeu, em batalha, passam a disputar o trono de Argos. Uma antiga profecia indicava que Atreu seria o sucessor de Euristeu. Isso fez Tiestes trapacear. Ele decidiu atrair as atenções da esposa do irmão, seduzindo-a e convencendo-a a trair o marido para favorecê-lo. A dupla traição, no entanto, não tardou a ser descoberta e Tiestes acabou exilado em outra cidade, onde se casou com outra mulher e com ela teve três filhos.

Atreu, de contrapartida, conseguiu o trono de Argos, mas amargava um ódio incurável pela traição sofrida. Decidido a vingar-se, tramou um plano terrível – atirou a esposa ao mar e convidou o irmão para um banquete, fingindo motivado pelo desejo de reconciliação. Nesse banquete, Atreu serviu a Tiestes a carne de seus próprios filhos num ensopado. Tiestes não desconfiou de nada até o final da refeição, quando lhe foram mostradas as cabeças decepadas dos meninos. Desesperado, ele amaldiçoou Atreu por toda a sua descendência. Esse é apenas o começo da história.

Anos mais tarde, Atreu acabou morto por Egisto, também filho de Tiestes, que então se apoderou do trono de Argos, passando a governar ao lado do pai. O tempo passou e Agamêmnon, filho de Atreu, agora rei de Micenas, partiu de Argos para a Guerra de Tróia. Com o objetivo de aplacar a fúria da deusa Ártemis por um malfeito passado e conseguir bons ventos para a viagem, ele sacrificou a própria filha, Ifigênia, provocando a fúria e o rancor de sua esposa, Clitemnestra.

No curso dos dez anos que, segundo a Ilíada, teria durado a Guerra de Tróia, Clitemnestra e Egisto tornaram-se amantes, tramando em segredo o brutal assassinato de Agamêmnon tão logo ele pusesse os pés casa. O plano foi levado a cabo e Clitemnestra pode, enfim, vingar a morte da filha. No entanto, passados mais alguns anos, o assassinato de Agamêmnon foi vingado pelo filho, Orestes, que acabou, por sua vez, matando a própria mãe. O matricídio era um crime imperdoável segundo as leis mais antigas. Deste modo, o fantasma de Clitemnestra, das profundezas do Hades, clamou às Erínias, deusas da vingança. O resultado foi que Orestes passou a sofrer perseguições terríveis.

O mito culmina com a intervenção de Atená, deusa da sabedoria, que, para o propósito de julgar o crime de Orestes, convoca o primeiro tribunal do júri, composto por doze cidadãos atenienses (o número dos ministros de Zeus). Na ocasião, segundo o mito, o julgamento terminou em empate. Os cidadãos, divididos, não foram capazes de chegar a um consenso, cabendo à própria deusa a solução para o impasse (o Voto de Minerva). Atená optou pelo fim daquele ciclo interminável de ódio e vingança, absolvendo Orestes. Mas esse ato acabou despertando a ira das Erínias, que se sentiram humilhadas e privadas da função que assumiram desde a noite dos tempos.

Novamente, usando de toda a sabedoria que caracterizava a sua natureza, Atená conseguiu apaziguá-las, auferindo-lhes o título de Eumênides (as boas deusas) e ordenando que lhes fosse consagrado um templo ao lado do novo tribunal. Assim, todos os homens deveriam lembrar-se do que acontece quando a justiça não é tratada com sabedoria e efetividade.

Esse mito ilustra bem o momento que estamos vivendo e acho lamentável que tenhamos perdido a capacidade de extrair sabedoria dessas passagens milenares. Não se pode dizer que não haja justiça na ação dos justiceiros. Há. Mas a questão é – que justiça é essa?

É a justiça das Erínias, a justiça ancestral, que já encontrou respaldo jurídico entre os homens e, de certa forma, ainda encontra respaldo moral. A verdade é que os justiceiros têm lá a sua razão. Os dois lados, tanto dos que são radicalmente contra quanto dos que são radicalmente a favor, aliás, têm sua parcela de razão. Falta-lhes, todavia, perceber que essa razão não é absoluta. Quiçá tentar olhar para a razão do outro.

No fundo, ainda somos como os cidadãos atenienses, divididos entre a condenação ou absolvição de Orestes. O problema da justiça das Erínias é que ela é avassaladora, insaciável, reproduz-se em um ciclo interminável de tormento. Já a justiça de Atená é a justiça do Pacto Social, a justiça preocupada com o equilíbrio da balança.

O sociólogo Émile Durkheim afirmava que o crime é uma condição normal em toda e qualquer sociedade. A condição patológica não está no crime, mas na impunidade. Infelizmente, hoje já não temos o Templo das Eumênides ao lado dos tribunais, para nos lembrar do que acontece quando a justiça de Atená sai de cena e entra a das Erínias. Deixo, então, a seguinte questão em aberto: teremos sabedoria para dar o Voto de Minerva? Porque, seja como for, nosso futuro depende dessa resposta.   

segunda-feira, 3 de março de 2014

A DÁDIVA DA VÊNUS


Era uma vez um reino muito próspero e feliz, além das montanhas do horizonte. A água corria fresca e límpida nos riachos, que umedeciam a terra tornando-a propícia para todas as sementes. Os ventos eram bondosos, não estragavam as plantações. As aves cantavam, alimentando-se dos frutos silvestres em bosques exuberantes e o Sol brilhava quase sempre afável no céu.
Vez ou outra, nuvens trovejantes se cruzavam acima da cidadela de tijolos e madeira de carvalho, espalhando-se e enturvecendo as cores da paisagem. Uma chuva fina ou vigorosa se seguia, espalhando o perfume de terra molhada no ar, enquanto coriscos reluzentes rasgavam o céu de leste a oeste. Embora muitos pudessem se sentir amedrontados nessas ocasiões, elas faziam com que a terra florescesse ainda mais em uma abundância que parecia não ter fim.
No centro da cidadela, havia um palácio rústico, porém confortável, onde vivia Joel, o rei, amado e respeitado. Ele sabia tratar os súditos com respeito e benevolência, paciente até mesmo com aqueles que nunca pareciam satisfeitos. Empenhava-se obstinadamente em zelar pela prosperidade do reino, fazendo as riquezas se multiplicarem. Então as aplicava em melhorias para as condições de vida de todos os seus súditos.
A rainha, esposa de Joel, chamava-se Sofia. Era uma mulher esguia, dona de beleza austera, semelhante a uma garça. Portadora de sabedoria e infindável amabilidade, não havia quem pudesse esquivar-se de admirá-la e respeitá-la quase tanto quanto ao próprio rei.
Sofia e Joel amavam-se, disso ninguém duvidava. Juntos viviam quase completamente felizes. Apenas uma coisa os impedia de gozar completamente essa felicidade ― embora já fossem casados havia muitos anos, Sofia não conseguia dar filhos a Joel.
Tentaram de tudo. Tratamento medicinal, ervas desconhecidas, antigos encantamentos... Nada parecia funcionar. Os anos se passavam, eles envelheciam e o sonho de trazer herdeiros ao mundo parecia cada vez mais distante.
Joel jamais pensou em ter outra mulher, mas era uma sombra sobre a sua fronte o fato de não ter para quem deixar tudo o que havia conquistado.
Então um dia, quando caçava num vale perto das fronteiras do reino, Joel se deparou com uma velha senhora caída à beira de uma estradinha de terra batida. Ao aproximar-se para ver o que se passara, constatou que a mulher estava desfalecida, esquálida, quase morta de fome e de sede.
Imediatamente, ordenou que seus cavalariços levassem a velha senhora para o palácio. Lá, sob os olhares atenciosos da rainha, ela recebeu cuidados e alimentação.
Dias depois, completamente recuperada, a velha senhora despertou e revelou-se a própria deusa Vênus. Muito grata, informou-lhes que, entediada com a eternidade, havia decidido caminhar disfarçada pela Terra, com o intuito de testar a disposição e a capacidade de amar dos seres humanos. Acabou fraca, faminta e sedenta, mas a bondade dos corações de Joel e Sofia haviam, mais que qualquer cuidado ou refeição, restaurado as suas forças e o seu poder.
Dito isso, a velha senhora despojou-se de seus andrajos sujos e, num clarão esmeraldino que invadiu todos os aposentos do palácio, assumiu as formas delicadas e exuberantes de uma mulher não-humana, tão bela quanto deveria ser a própria beleza.

― Como forma de gratidão ― ela disse ―, lhes concederei um filho, pois posso ver que este é o maior desejo de seus corações. Será um menino. Que nome lhe darão?

A rainha mal podia se conter de emoção. Lágrimas vertiam de seus olhos, embotando-lhe a visão, quando ela declarou, praticamente sem pensar ― Teodoro! Vai se chamar Teodoro, o “presente dos Deuses”.

― Que seja ― disse a Senhora Vênus. ― Serei a madrinha de Teodoro desde este momento até o fim de sua vida. E como um presente especial, farei dele a mais bela criatura mortal a haver caminhado sobre a Terra.

Ao terminar de dizer essas palavras, Vênus desapareceu, levando consigo todo o esplendor de sua presença.
Nos braços de Joel, uma Sofia ainda consumida de emoção buscava abrigo. Seus soluços transbordavam esperança. Suas mãos, delicadamente, percorriam o próprio ventre, onde agora, pela dádiva de Vênus, haveria de germinar o fruto de um amor incondicional.

*******

Cerca de duas semanas após a benfazeja aparição de Vênus, as curandeiras do reino confirmaram o desígnio da Deusa – Sofia esperava um filho.
Tudo transcorreu em paz durante os nove meses que se seguiram. A rainha estava radiante e feliz. Comia tudo o que via pela frente, sua saúde parecia uma fortaleza inabalável. Nos olhos do rei, uma certeza e confiança nunca antes vista refulgia radiosa. Ele finalmente podia se sentir completo enquanto homem e soberano.
O parto deu-se numa sexta-feira enluarada, a primeira daquela primavera. Não houve qualquer surpresa quanto ao sexo da criança – um menino –, tal como a Senhora de roliças coxas e olhos cor de jade havia predestinado. A surpresa deu-se mais pela beleza incomparável da criança, no primeiro momento mesmo em que esteve fora do útero de sua mãe.
Não era enrugado e taciturno, como as crianças recém-nascidas costumam ser. Pelo contrário. Tinha a pele lisa, rosada como o céu do alvorecer. Seus lábios, finos e bem desenhados, eram da cor dos morangos maduros; mal se abriam para ele chorar. Os pés e as mãozinhas delicadas, com seus dedos rechonchudos, davam vontade de morder. Naquele rostinho angelical, tudo parecia rigorosamente desenhado para agradar aos sentidos, numa verdadeira catarse de simetria e perfeição.
A lua iluminava o céu e raios prateados penetravam a janela do aposento, inundando todo o ambiente. No momento em que o milagre aconteceu e o chorinho fez-se ouvir, as ajudantes da parteira vislumbraram uma pomba que entrou e, tal qual um floco de neve, pousou aos pés do leito da rainha.
A promessa de Vênus se cumprira. Teodoro foi, desde o nascimento, a mais bela criatura que um dia caminhou sobre esta terra.
E assim ele cresceu. Por onde passava, atraía olhares antropofágicos, tanto por conta de sua beleza incomum quanto pela candura que caracterizava a sua natureza.
Apesar disso, o rei quis iniciá-lo nas artes da guerra. E não se pode dizer que tenha errado. Teodoro revelou-se hábil com a espada. Era um menino inteligente, aprendia rápido, comunicava-se com eloquência, e agora estava se tornando um ótimo esgrimista. Quer dizer, nenhuma dessas qualidades realmente chegava perto de se comparar à sua beleza, mas o fato é que ele não desapontava em termos de habilidade e prontidão.
Durante anos, as coisas foram assim. Um rio que fluía docemente por leitos arenosos e suaves. Mas se há algo incerto na vida este algo é a sorte, madrasta malvada de homens e deuses desde tempos imemoriais.
A prosperidade invejável do reino ganhava fama e se espalhava mais e mais a cada ano. Também a beleza do jovem príncipe tornara-se famosa. Como era de se esperar, não tardaram a aparecer volumosas – e voluptuosas – propostas de casamento para o herdeiro do trono. Mas ainda maior que a curiosidade gerada pela aparência sobrenatural de Teodoro, era a avidez que a fortuna de Joel podia despertar.
Rumores sobre as maravilhas do reino não tardaram a chegar às terras do ambicioso sultão Malik, dos Desertos Pantanosos no distante Oriente. Malik era um soberano soberbo e belicoso, que havia se tornado conhecido por tornar o pequenino povoado de seu pai em um auspicioso império. Orgulhava-se de ser o homem mais rico e poderoso da Terra. Ele não poderia tolerar a existência de um rei, cuja sorte e fortuna ousavam rivalizar com a sua.
Mas Malik não era como os reis do ocidente. Não. Ele não queria dar a filha – que nem mesmo possuía – em casamento ao jovem Teodoro. Ele queria ter o que era de Joel. Apenas isso. E sua linguagem para conquistar os seus desejos era apenas uma – a guerra.
De todas as virtudes de Joel, ser o comandante de um exército poderoso não era uma delas. É claro que havia guerreiros valorosos no reino, o próprio príncipe era um deles. Mas seria o bastante para conter o avanço e a fúria das tropas de Malik?
Os céus enturveceram naqueles dias tristes, mas não eram mais as chuvas fertilizadoras. Em lugar de água, muito sangue regou as terras de Joel. O outrora rico povoado de tijolos e madeira de carvalho ficou devastado. O povo padecia de fome e doença, quando não sob as lanças dos soldados de Malik. Foi uma derrota desastrosa.
Como é a tradição da guerra, o lado vencedor assassina os homens e escraviza as mulheres daquele que perdeu. O espólio do guerreiro é o saque, o estupro e a escravidão.
Joel foi o primeiro a padecer no campo de batalha, sob a lâmina ensangüentada da espada de Malik. O príncipe, incumbido de guardar as damas, no palácio, seria o último.
Vencido, Teodoro se prostrava, ajoelhado diante do algoz. Ele esperava o golpe derradeiro. Mas alguma coisa em seu olhar paralisava a coragem do carrasco.
Ora, é sabido que os homens, na guerra, devem morrer olhando para os olhos de seu matador. Essa é a tradição. Mas o carrasco, por alguma razão, não podia, simplesmente não era capaz de tirar a vida do jovem Teodoro. Não enquanto aqueles olhos verdes estivessem pousados sobre sua face.
O episódio atraiu a atenção – e a cólera – do próprio Malik, que assassinou o carrasco a sangue frio por sua covardia e decidiu, ele mesmo, exterminar a vida do jovem príncipe. Insensível à beleza de qualquer coisa que não fosse o brilho do ouro, ele sacara a cimitarra e se preparava para desfechar o golpe final. Foi quando o filho, seu único filho, o interrompeu.
Seu nome era Hassan, mas era conhecido em sua terra como Príncipe Negro, por causa do tom acobreado de sua pele. De fato, Hassan tinha quase a cor do ferro, ligeiramente avermelhado de ferrugem.

― Pelos Deuses, meu pai, pare! ― disse Hassan.

Malik olhou para o filho, sem entender.
O Príncipe Negro aproximou-se devagar, olhando fixamente para Teodoro, sujo e derrotado a sua frente.

― Ele é o último de sua linhagem, não devemos matá-lo.
― Está louco? ― Malik perguntou. ― Então quer deixar vivo o único herdeiro do antigo rei, para que ele queira se vingar de nós depois?

Hassan olhou profundamente para Teodoro. Quase se perdeu no verde esmeraldino de seus olhos.

― Ele tentará vingar-se se o deixarmos aqui, com os sobreviventes revoltosos. Se o levarmos conosco, junto aos demais escravos, sob os nossos olhos jamais será capaz de tamanha ousadia... Para não dizer tolice.
― Não sei...
― Pense, meu pai. Dizem, por aqui, que o príncipe é dádiva de uma deusa. Se for verdade, ele também é um dos muitos tesouros destas terras... Além disso, eu não acho que iríamos querer a ira de nenhuma deusa sobre nós, iríamos?

Malik sobressaltou-se ante a última declaração de Hassan. Numa série de gestos rápidos, cobriu os lábios, os olhos e os ouvidos com as palmas das duas mãos, deixando sua cimitarra cair no chão.

― Está decidido ― disse, afinal ― o jovem príncipe irá conosco! Coloquem-no junto aos demais escravos!

Perto dali, Sofia, dentro de uma carroça cercada por grades finas de metal, suspirou aliviada.

*******

Nas terras pantanosas governadas por Malik, Sofia e Teodoro foram dolorosamente separados. A primeira, designada para servir e acompanhar a esposa do sultão, conseguia pensar apenas na segurança do filho, única parte de seu mundo que ainda estava de pé. O segundo, cujo coração transbordava de ódio e ressentimento, fora escolhido para cuidar dos suntuosos jardins do palácio de Hassan.
Hassan, o Príncipe Negro, vivia sozinho em uma residência próxima ao palácio de seu pai, centro do governo de toda a região. Ele mesmo havia requisitado Teodoro para cuidar de seus jardins.

― Espero que saiba o que está fazendo, filho – disse Malik.

Mas não era verdade que Hassan sabia. Ele nem ao menos podia entender aquela estranha necessidade de manter Teodoro sempre perto de si. Não era uma atitude sensata, tampouco racional, mas algo absolutamente – e inexplicavelmente – alheio ao seu próprio temperamento.
Hassan não era nenhum tolo com inclinações humanitárias. Pelo contrário, era o melhor estrategista de seu pai, de maneira que boa parte do sucesso daquela empreitada se devia tão somente a ele. Como todos os guerreiros e generais de sua terra, Hassan sabia que a coisa mais prudente a se fazer ao conquistar o reino de alguém era matar impiedosamente todos os homens, especialmente os de linhagem real. Mas quando se tratava de Teodoro, aquele rapazola que mal acabara de conhecer, por alguma razão ele não tinha forças.
Seria mesmo Teodoro um “presente dos deuses”, como seu nome sugeria? Seria mesmo uma dádiva de Vênus?
Hassan lembrou-se de ouvir a mãe contar, certa vez, que também havia tido problemas para dar herdeiros ao sultão. Então um dia, como as mulheres de sua aldeia costumavam fazer e sua avó lhe aconselhara, ela foi até a praia onde os mitos contavam que a senhora Astarte havia nascido. Ali, prostrada, ofereceu-lhe sete lenços coloridos, atados às murtas que misteriosamente floresciam no local. Naquela praia lendária, a esposa do sultão clamou à Deusa, enquanto lagrimas vertiam abundantemente de seus olhos. Astarte era o nome de Vênus na terra de Hassan.
Pouco tempo depois de ter ido àquela praia oferecer lenços e o seu amor à Deusa, foi-lhe revelado que em seu ventre se engendrava uma criança. Desde este dia até o fim de sua vida, a esposa do sultão, mãe de Hassan, usaria um pingente de esmeralda em seu pescoço, como forma de gratidão.
Hassan, afinal, também era um presente de Vênus ou Astarte. E a esmeralda no colar de sua mãe era verde e brilhante como os olhos de Teodoro, que agora cuidava das flores em seu jardim.
Hassan saía, todos os dias, sorrateiro, para espiar Teodoro enquanto ele cuidava das flores. Sentia o coração disparar, a testa suar, mas precisava, nem ele sabia porquê, ver o sol bater naquela pele, ouvir o tom melodioso daquela voz. Por fim, não lhe restava escapatória – Hassan precisaria admitir, nem que fosse apenas para ele mesmo, a irremediável e incontrolável paixão que estava sentindo por aquele rapaz.

*******

Durante um tempo relativamente longo, tudo em que Teodoro conseguia pensar era vingança. Tal como o sultão havia previsto, ele pensava em vingar a morte de seu pai, a escravidão de sua mãe e de si mesmo, a vergonhosa submissão do reino em que nascera. Por vezes, quando não estava cansado o bastante, não conseguia dormir, amargando dolorosas horas de agonia e tristeza. Era demais para ele o peso da realidade de um reino poderoso como havia sido o de seu pai padecendo de forma tão ultrajante, enquanto seu herdeiro legítimo cuidava das flores no jardim do próprio algoz.
A amargura exasperada no coração de Teodoro deixava Sofia deveras preocupada nas raras ocasiões em que podiam se encontrar. Ele falava alto. Ela se preocupava com quem pudesse ouvir. Ele falava de vingança. Ela queria apenas que o filho continuasse vivo. Ele falava do direito ao trono. Ela respondia que nenhum poder era legítimo e que todo trono, um dia, havia sido conquistado pela força. Até mesmo o trono de seu pai.
Cego como estava, no entanto, Teodoro não lhe dava ouvidos. Parecia imune a toda forma de convencimento e a única coisa de que não podia se furtar era dissimular sorrisos ao seu novo amo. Por alguma razão estranha, aliás, o Príncipe Negro parecia gostar de lhe fazer sorrir.   
     Naqueles tempos, Teodoro começou a percebê-lo por entre as moitas dos jardins, tentando disfarçar sua presença, enquanto, silencioso, o observava em suas obrigações diárias. Achou ainda mais estranho quando ramalhetes de flores frescas começaram a aparecer em sua cama. Um dia, voltando de uma campanha comercial no Oriente Extremo, Hassan atravessou o pátio do palácio a cavalo, desceu diante dele e lhe entregou um belíssimo frasco repleto de nardo, essência tão maravilhosa quanto rara, diante de todos os criados.
Um pouco depois disso, Teodoro foi chamado a trocar de função. O Príncipe não o queria mais cuidando dos jardins e das flores. Suas novas atribuições seriam nos aposentos reais. Hassan queria Teodoro como seu camareiro pessoal.
Passou a ser responsabilidade de Teodoro o chá que o Príncipe Negro tomava todas as noites, antes de dormir. Pela manhã, tinha de ajudá-lo a se vestir, depois servir-lhe o desjejum. Todas as tarefas que o deixavam indesejavelmente próximo daquele a quem secretamente desejava matar.
Mas como desejar de fato a morte de Hassan? Não havia no mundo criatura mais terna, ao menos não no trato com Teodoro. Ele era agradável, sorridente, gostava de conversa antes de pegar no sono e perdia horas desfiando as mais encantadoras fábulas orientais, com aquela voz grave e modulada. Ao despertar, logo nas primeiras horas do dia, seu humor era surpreendentemente bom. Costumava contar piadas antes de sentar-se para comer, depois tomava sua cítara e perdia algum tempo repetindo canções, parecendo atento para descobrir as mais capazes de fazer com que Teodoro se sentisse feliz.
Desgraçadamente, ele não fazia de sua presença um fardo. Desgraçadamente porque isso ia completamente contra os interesses de Teodoro e servia apenas para deixá-lo tremendamente confuso.
Mais ou menos nessa época, Teodoro começou a notar o Príncipe Negro com mais atenção. Pela primeira vez, percebeu a suavidade dos traços de seu rosto, a beleza exótica daquela cor ferruginosa em sua pele, o brilho penetrante de seus olhos. Hassan era mais belo do que Teodoro poderia ter imaginado, mas, mais que a beleza, era sua amabilidade irrepreensível que tornava tudo tão difícil.   
Um dia, com o pensamento ainda atormentado por desejos de vingança, Teodoro, que àquela altura precisava se esforçar para não gostar de seu senhor, foi surpreendido por uma velha feiticeira no mercado da cidade. Sem nenhuma razão aparente, a velha que o abordara oferecera-lhe um frasco com extrato de estricnina, um veneno poderoso e letal. Algumas gotas no chá noturno de Hassan seriam suficientes para lhe dar a vingança que tanto almejava.
Teodoro levou o frasco de veneno consigo para o palácio. Sua intenção era servi-lo em pequenas doses, para deixar Hassan doente e levá-lo à uma morte lenta, sem levantar suspeitas. Assim, ficaria livre para pensar numa maneira de terminar sua vingança. O próximo passo seria a morte do sultão.
No entanto, ao chegar a hora derradeira, Teodoro deixou-se trair pela simpatia que Hassan havia conseguido despertar em seu coração. Ele hesitou. E, como demorasse mais que o habitual para trazer o chá, o Príncipe Negro resolveu verificar o que estava acontecendo.
Surpreendeu-o parado diante da bandeja de prata com o frasco de estricnina nas mãos.

― O que é isso? ― disse Hassan, tomando o frasco das mãos de Teodoro.

Ele removeu o delicado tampo de vidro e levou o frasco até o nariz, examinando o odor do conteúdo. Depois disso, uma expressão de profundo desencanto apoderou-se de seu rosto. ― Um veneno? Então é isso... Você quer me matar?
― Não me olhe desse jeito! ― disse Teodoro, agora revelando despudoradamente todo o ressentimento que havia se esforçado em ocultar. ― Não tem esse direito! Você e seu pai mataram o meu pai! Sem nenhuma compaixão, destruíram toda a vida que um dia conheci! Meu reino foi feito em pedaços e fizeram de mim e minha mãe seus escravos! O que você achou que fosse acontecer? Eu vivo apenas para me vingar!
― Então meu pai esteve certo o tempo todo... Eu devia ter deixado que  lhe cortassem a cabeça.
― Sim, devia! Mas não foi o que você fez! Você me manteve vivo para me humilhar ainda mais!
― É assim que você vê?
― Agora você não tem opção. Eu atentei contra você. Se me deixar vivo, provavelmente atentarei de novo. Vamos, acabe com isso!
― Não posso...
― O quê?
― Não percebe que te amo?

Houve um silêncio aterrador. As palavras de Hassan haviam atravessado o peito de Teodoro como flechas.

― Eu te amei desde o dia em que te vi ― Hassan continuou. ― Não me peça para explicar porque eu mesmo não posso entender. Mas não pude deixar que tirassem a sua vida naquele dia e não posso fazer isso agora. Prefiro a morte... E, nesse caso, minha vida é tudo o que tenho para lhe oferecer.

Teodoro arregalou os olhos, sem acreditar no que ouvia.

― Tome ― disse Hassan, estendo a mão com o frasco de veneno. ― Acho que isto é seu. Se é verdade que minha morte poderá compensar sua dor de alguma forma, coloque o veneno no chá e leve para mim. Siga com seu plano. Eu tomarei o que você me servir.

Teodoro pegou o frasco com as mãos trêmulas, os adoráveis lábios entreabertos.
Hassan lhe deu as costas, preparando-se para voltar aos aposentos reais, quando se deteve um instante na soleira da porta.

― Tudo o que lhe peço ― acrescentou ― é que tente ver meu sacrifício como um gesto de amor. Quando eu não estiver mais aqui, faça o que quiser de sua vida. Fuja. Vá atrás de meu pai, se quiser. Seja livre. Mas seja generoso comigo em seu coração.

“Seja generoso comigo em seu coração.” Aquelas palavras faziam eco em sua mente. Teodoro precisou de um tempo para se recuperar.
Quando chegou aos aposentos reais, encontrou Hassan em sua cama, com as pernas cruzadas, na posição de sempre, esperando o chá. Mas Teodoro não trazia nenhuma bandeja de prata, com bules e tigelas. Apenas o pequeno frasco de estricnina numa das mãos.
Ele se sentou na cama, de frente para Hassan. Com as duas mãos, entregou-lhe o frasco de veneno. O Príncipe Negro sorriu. Não com os lábios, mas com os olhos.
Delicados raios de luar entravam pela janela escancarada do aposento. Uma brisa fresca de verão soprava quente do lado de fora, agitando um pouco as folhas das palmeiras no jardim. Apesar disso, a noite estava silenciosa. Assim mesmo, eles não ouviram quando o frasco rolou para fora da cama, espatifando-se ao encontrar o chão.

*******

Naquela noite, tendo a lua e o vento como testemunhas, Teodoro e Hassan se encontraram na luz dos olhos um do outro. No pulsar acelerado de seus corações, fluía o próprio ritmo da vida. Se o veneno que a bruxa lhe entregara no mercado havia servido para matar alguma coisa àquela noite, esta era o ódio de Teodoro e a barreira que havia entre os dois.
Como não pudessem compreender completamente a natureza irresistível do sentimento que os unia, ambos os príncipes decidiram manter em segredo aquele amor. Mas Hassan, sobretudo, não era hábil em guardar segredos como o era na guerra.
Feliz como estava, ele passou a oferecer presentes a Teodoro com frequência ainda maior. Não mais os trazia, como antes, mas fazia questão de levar o rapaz consigo a toda parte.
De fato, os dois andavam sempre juntos. Hassan, falante e orgulhoso como era, gostava de ensinar a Teodoro tudo o que sabia ou pensava saber. Aquela amizade não tardou a despertar o interesse e a atenção de todos, principalmente do sultão.
Malik, infinitamente mais experiente que o filho, preocupou-se com a cena que se desenhava a sua frente. Ele também não podia ignorar a beleza incomum do jovem que trouxeram do Ocidente e temia pelo tipo de armadilha que esperava por Hassan. Mais que depressa, tratou de encontrar uma noiva para o filho ― a jovem e bela princesa de um reino vizinho.
Hassan, de sua parte, não se furtou de conhecer a moça. Mas seu coração, pelo que parecia, já estava ocupado.
Malik tentou outra vez. E outra. E outra. E outra. Cada uma mais linda e rica que a outra. Todas sucessivamente rejeitadas por Hassan.
Não é que ele não se interessasse completamente pela beleza e fortuna das pretendentes escolhidas por seu pai. É que não podia considerar sequer estar com outra pessoa que não Teodoro, com sua pele macia e seus olhos de esmeralda. Acostumara-se com aquele cheiro, aquela cor, aqueles cabelos enrolados. Era um viciado inconfessável e já não podia viver sem embriagar-se todos os dias da presença de seu amor.
Dolorosamente desconfiado, o sultão, um dia, ordenou a um espião para que seguisse o filho, observando-o de longe. Queria ter conhecimento de cada passo seu. Sem nada saber, Teodoro e Hassan continuaram vivendo como se nada se passasse.
Quando o espião voltou, trazendo confirmação às suspeitas nefastas do sultão, a fúria apossou-se dele. Bradou violentamente contra os servos e os deuses, virou mesas, quebrou louças, esbofeteou o informante, por último mandou matá-lo. Não apenas por ser o mensageiro de notícia indesejável, mas para que ninguém, jamais, pudesse descobrir o segredo vergonhoso de seu filho.
Malik não podia aceitar aquilo. Malik não podia aceitar muitas coisas. Mas ele tinha um plano.
Secretamente, convocou os assassinos mais habilidosos e furtivos do reino. Eles não precisavam saber o motivo. Se o sultão queria alguém morto, esse alguém morria. Os dias de Teodoro estavam contados.

*******


Naquela manhã, Teodoro havia ido ao mercado, como de costume, comprar ervas para o chá noturno de Hassan. No caminho de volta, foi surpreendido pela velha feiticeira que lhe havia oferecido o frasco de veneno tempos atrás. Ela apareceu de repente, segurando-o pelo braço quando ele passava na frente de uma tenda velha e esfarrapada.

― Você? ― disse Teodoro. ― O que você quer, velha? Não quero mais nenhum veneno. Solte-me!
― A pergunta é: “o que você quer?”, jovem presente de Vênus ― a velha respondeu.
― Como assim? Do que está falando?
― Você quer viver?
― Sim! É claro que sim!
― Então esta noite, quando estiver com o Príncipe Negro, peça a ele que troque de roupas com você. Faça isso ou morrerá.
― O quê? Ele jamais faria uma coisa dessas! Você está louca!
― Ah, ele fará qualquer coisa que você pedir, criança! Você sabe bem disso.
― E por que eu deveria dar-lhe ouvidos? Quem é você, afinal?
― Tudo em seu tempo ― disse a velha, soltando o braço de Teodoro e voltando para dentro da tenda.

Inconformado, Teodoro irrompeu pela tenda caindo aos pedaços atrás da velha, mas não havia mais ninguém ali. Ela havia desaparecido.

*******

Quando a noite caiu e Teodoro encontrou Hassan, ele fez como a bruxa lhe havia aconselhado no mercado àquela manhã. Ainda sem compreender o porquê, propôs um jogo ao Príncipe Negro. Eles deveriam trocar de papel. Teodoro se vestiria com as roupas de Hassan e agiria como ele, contando histórias e tocando a cítara. Hassan, por sua vez, faria a mesma coisa, usando as roupas e imitando os gestos de Teodoro.
Como a velha bruxa havia previsto, o Príncipe Negro não apenas aceitou a brincadeira como achou-a divertida, e assim eles fizeram. Trocaram de roupas e, entre risos e soluços, puseram-se a imitar os gestos e os modos um do outro.
Do lado de fora, enquanto isso, os assassinos do sultão haviam chegado junto com a lua. Posicionavam-se nos muros do palácio de Hassan, sem que ninguém soubesse ou pudesse imaginar, prontos para executar sua terrível missão. Mas havia outra coisa àquela noite. Além das roupas e do gestual trocados, uma bruma espessa e incomum naquela época do ano baixou sobre o palácio, tornando a visão difícil e confusa.
Assim, quando Hassan, usando as roupas de Teodoro, aproximou-se da janela para olhar a névoa espessa do lado de fora, foi atingido bem no peito pela flecha envenenada de um dos assassinos de seu pai.
Teodoro correu, desesperado, em socorro de Hassan. O sangue começava a brotar voluptuoso do ferimento.
Tão misteriosamente quanto havia surgido, a névoa do lado de fora começou a dissipar. Logo os assassinos, horrorizados, puderam ver o que tinham acabado de fazer ― por engano, mataram o filho do sultão.
Temendo a morte certa, desapareceram e jamais puderam ser encontrados novamente. Quanto a Malik, que estava em seu palácio perto dali, ele não tardou a descobrir o que havia acontecido e quase enlouqueceu.
Num rompante de exasperação e agonia, foi direto para a casa de Hassan, irrompendo feito um vento ensandecido, para encontrar o filho semimorto entre as pernas de um desconsolado Teodoro.

― Deuses, o que fiz?! ― bradou Malik, tão logo encontrou-os largados no chão. ― Eu matei meu próprio filho!... Hassan! Hassan! Não morra, pelos Deuses, eu lhe imploro!
― Agora você clama pelos Deuses? ― ressoou de repente uma voz desconhecida para Malik, porém conhecida para Teodoro.

Quando eles se voltaram para a porta do aposento, deram com a velha feiticeira do mercado, amparada em seu cajado de madeira escura.

― Maldição! ― Malik retrucou― Quem é você, que invade a casa de meu filho neste momento de dor, velha infeliz?
― Meça suas palavras, sultão ― disse a velha, com voz grave e autoritária. ― Não me reconhece? Talvez em outra forma fique mais fácil.

A velha deu com o cajado no chão e um clarão opalescente espalhou-se pelo quarto, tão poderoso que cegou a todos, enquanto resvalava por todos os cômodos do palácio e escapava através de suas janelas. Quando a luz diminuiu e eles voltaram a ser capazes de enxergar alguma forma, viram ― ou acreditaram ver ―, uma mulher cuja beleza não se poderia descrever. Ela estava parada de pé exatamente no mesmo lugar em que antes estava a velha e trajava apenas uma longa túnica verde, feita de tecido tão suave e etéreo que mais parecia uma mistura e água e cor.

― Minha Senhora! ― exclamou o sultão, prostrando-se diante dela. Com as palmas das mãos, ele cobriu os lábios, os olhos e os ouvidos.
― Sua reverência não significa nada ― ela disse, a voz refluindo em ondas como o próprio mar. ― Eu lhe dei tudo o que há de valioso em sua vida, Malik. Primeiro o amor de uma mulher honrada e valorosa. Depois um filho, belo e corajoso, para herdar suas conquistas e continuar sua linhagem. E o que você fez? Não deu valor a nada disso. Você trocou o amor pela ganância. Ganância de riquezas, ganância de poder, ganância de controle. Sobre a ganância dos homens eu não tenho nenhum poder. Pois veja aonde ela lhe trouxe.
― Eu imploro o seu perdão! Leve a mim, se desejar, mas, por favor, poupe a vida de meu filho!

A Senhora voltou-se piedosamente para Teodoro, sentado no chão com Hassan caído em seu colo. Sorriu. Ele sorriu de volta. Ela se maravilhou reconhecendo o brilho de sua própria graça no sorriso do rapaz.

― Eu não quero a sua vida, sultão ― ela disse, voltando-se outra vez para Malik ― Mas a generosidade de seu gesto me enternece. Daria mesmo a sua vida pela de Hassan?

Ele levantou os olhos para ela um instante.

― Sim! Eu daria minha vida miserável pela dele! Faço qualquer coisa, mas me poupe da desgraça de perdê-lo!
― Pois bem... Eu abençôo o amor, sultão. Como quer que ele se manifeste. Nunca mais coloque-se no meu caminho!
― Eu lhe dou a minha palavra!

Novamente, um clarão poderoso inundou o aposento, ofuscando a todos, para depois mergulhar o palácio inteiro na calidez de sua luz. Quando a claridade começou a dissipar, Malik e Teodoro conseguiram discernir um suave e adocicado perfume de rosas no ar. No colo de Teodoro, Hassan, miraculosamente sem a flecha ou ferimento em seu peito, abriu os olhos, tossindo como quem acabasse de acordar.

― O que aconteceu? ― ele quis saber.

Mas Teodoro e Malik ainda não eram capazes de falar. Eles apenas se olhavam, na misteriosa consciência de estar unidos, agora e para sempre, por aquele amor tão improvável quanto incondicional. A verdadeira dádiva de Vênus.
No fim daquele verão, houve uma grande festa no reino. Não chegou a ser um casamento de fato, pois ninguém sabia, ainda, como celebrar o casamento de dois príncipes. Eles festejavam simplesmente ao amor, à suas aventuras e desencontros e à graça e beleza indizíveis que apenas ele era capaz de dar à vida.
Malik devolveu o reino de Joel a Teodoro, que voltou para lá na condição de soberano, levando consigo Sofia e Hassan – suas causas de viver acima de todas as outras.
Em pouco tempo, o reino voltou a prosperar. Agora, com a ajuda de Hassan, ainda mais do que havia prosperado nos tempos de Joel. Teodoro e Hassan governaram, assim, amados pelo povo e pelos Deuses, mas, principalmente, um pelo outro. E assim eles viveram felizes para sempre. Algumas vezes sorrindo, outras vezes chorando... Porque, afinal de contas, nenhuma história de amor conhece realmente um final.

FIM